quinta-feira, 3 de julho de 2008

'Primavera' dos sonhos e da ficção

Acima, foto de "Goiaba - 'Solaris/Barbarella'", um dos trabalhos da exposição
Sonhei várias noites que pelas frestas das portas de Apontamentos destino eu via uma imagem da Sala de Jantar coberta de água do mar até a altura dos quadros. Daí vieram outros sonhos, onde desenhos tomavam formas abstratas, alguma coisa de ficção que veio do passado e também do futuro... (BAKKER)
Essa parece ser a inspiração, o motivo que conduz A partir de primavera noturna, individual de Claudia Bakker, inaugurada no último dia 26, antes de partir para Portugal, onde fará sua primeira exposição individual internacional. Seu processo de criação compreende, pois, as fronteiras do sonho e da ficção, universo metafísico no qual a artista explora o informal e o abstrato.
Encontramos nesse trabalho elementos que já estavam presentes em Primavera noturna, sobretudo no que diz respeito às raízes ou rizoma, de onde Bakker parte para criar A partir de primavera noturna. A tendência que já se encontra em Primavera noturna, toma agora outros desdobramentos.
Uma das qualidades do rizoma é a de ter conexões heterogêneas. Nesse sentido, Bakker teve a sensibilidade de levar adiante esta idéia; uma vez que A partir de primavera noturna já nos mostra os indícios de agenciamentos que não se restringem somente às raízes ou rizoma. O próprio rizoma não se limita ao domínio da raiz, pois a própria raiz se conecta, além de outras raízes, com a grama, com as flores e com as árvores. Todavia, as conexões de Bakker, além das raízes ou rizoma, desta vez seguem o viés do entrelaçamento. O que a artista captura do rizoma são os laços, os nós, o momento em que as raízes se entrecruzam; o nó górdio da criação, mas também o infinito, onde tudo parece mergulhar.
O domínio do sonho e da ficção constituem ainda, para Bakker, algo que evoca uma temporalidade, vinda do passado, mas também do futuro, como ela mesma afirma. Uma virtualidade ou coexistência que a artista atualiza em sua criação. Os sonhos nos remetem a lembranças, mas também são nossos fantasmas, nossos embriões, na medida em que a partir deles o drama das idéias se desenrola. O sonho, segundo Bergson, afrouxa nossas funções orgânicas e modifica a superfície de comunicação entre nosso eu e as coisas exteriores. Por isso a dimensão onírica se relaciona diretamente com o tempo, ou ainda com o que Bergson designa por duração.
A duração é precisamente esse estado onírico em que nos encontramos, no qual não medimos o tempo, mas só o sentimos. Justamente por isso, nossos instintos se confundem e embaralham os sentidos. Um território propício ao domínio da arte e, portanto, da criação; já que a arte é, por excelência, uma atividade criadora.
A idéia de ficção, presente nesse trabalho, nos conduz a lugares e coisas que só vemos na ficção científica ou mesmo nos sonhos. É ali que a arte trava sua luta contra o caos. A arte precisa mergulhar no caos para trazer dele suas variedades, que não constituem uma reprodução do sensível, mas sim um ser de sensação. A arte traça um plano de composição sobre o caos e traz dele as velocidades infinitas e as compõe com seus movimentos finitos. Nesse sentido, observa Deleuze: "O pintor passa por uma catástrofe, ou por um incêndio, e deixa sobre a tela o traço dessa passagem, como do salto que o conduz do caos à composição" (O que é a filosofia?. p. 260-261). O domínio da ficção implica um mundo possível, e não a representação do mundo tal como ele é, daí os indícios de que fala a artista: "... é preciso buscar no tempo associações e o que ofereço a quem vê é sempre um indício" (BAKKER).
A arte é sempre um acontecimento criador, novo, imprevisível. Cria-se a partir desse mundo em direção a mundos possíveis, mas ainda desconhecidos, um futuro imprevisível e irredutível ao presente. Por isso, Bakker assinala o domínio da "ficção que vem do passado e também do futuro" (BAKKER). A única coerência desse encontro do sonho com a ficção, que povoa esse trabalho, vem de fora, do caos que a artista compõe com o plano traçado.
Criar implica em traduzir, decifrar, desenvolver signos exteriores. O artista, em geral, percebe as pressões secretas da obra vindas de fora. As variedades artísticas, bem como as idéias, não são imóveis, mas sofrem modificações, variações, transformações próprias às tendências, porque são solidárias de um plano de composição da arte que está em perpétuo devir. Daí a continuidade desse trabalho que se inicia em Primavera noturna.
O universo dos sonhos e da ficção no qual A partir de primavera noturna mergulha é o próprio campo metafísico. Esse universo desemboca diretamente no tempo. A artista traça, pois, um plano de composição constituído por elementos informais ou abstratos, extraídos da mistura das velocidades infinitas do caos com os movimentos finitos da arte.
A exposição ficará em cartaz até 26 de julho na Galeria Arte em dobro, no Leblon. A artista apresenta 26 novos trabalhos que reúnem desenhos feitos com linha, objetos de tecido e fotografia.