quarta-feira, 16 de maio de 2007

A propósito do que nos leva a pensar

Creio que seja de extrema importância colocarmos aqui a questão acerca daquilo que nos leva a pensar. Pensar não é algo que fazemos naturalmente ou mesmo voluntariamente, porque ninguém o faz naturalmente, como observa Fitzgerald: "...é uma atitude que ninguém jamais adota voluntariamente [...] é como carregar grandes e secretas malas..." (The crack-up). Somos levados a pensar por uma violência, é preciso que algo nos incomode e nos arraste a esse árduo exercício que é o pensamento, pois como disse Gilles Deleuze: "Pensar suscita a indiferença geral, a indiferença só cessa quando os problemas vêm à tona..." (O que é a filosofia?). Disso compreendemos que o pensamento nos desperta somente quando algo nos perturba, caso contrário seguimos com nossas vidas, sem nos incomodarmos ou nos preocuparmos com nada.
Considero que seja por isso que Deleuze afirmou, ainda, que a filosofia é uma criação de conceitos, pois quando somos levados a pensar, quase que automaticamente somos também levados a criar. Nesse exercício de criação nasceu a filosofia.
Desde o séc. VI a.C. os primeiros filósofos, também chamados físicos, pois investigavam acerca da physis ou da natureza das coisas, começaram a pensar sobre os fenômenos naturais como a chuva, o trovão e a própria origem do universo. Evidentemente que essas explicações dependeram bastante de conhecimentos astronômicos e matemáticos, mas o que difere a explicação desses pensadores daquelas dadas pelos mitos e pelas crenças populares é o uso da especulação racional para compreender a realidade. Se a filosofia nasceu como física, se os primeiros pensadores se diferenciaram de outros sábios de sua época é porque eles criaram, inventaram algo jamais experimentado pela tradição do ocidente.
Este é todo o exercício de criação conceitual, toda história da filosofia tem seus grandes pensadores que, ao criar seus conceitos, remexem em tudo aquilo que já estava estabelecido. Certamente há um inconveniente em tudo isso, pois mexer com os valores prontos e incomodar a besteira, nos remete à questão para que serve a filosofia? A filosofia serve para incomodar a besteira e para criar novos valores. Sabemos que a criação de novos valores perturba aqueles que se apoderaram dos valores predominantes e não querem que o pensamento seja livre para criar novos valores.
Mas a filosofia não está só em seu exercício de criação, a arte e a ciência também são disciplinas criadoras. Por isso a filosofia mantém uma relação essencial com esses domínios da criação, como a ciência e a arte. Artistas e cientistas também são grandes pensadores, mas pensam em termos de percepção e função. A arte cria blocos de sensações, a filosofia cria conceitos e a ciência cria funções, equações. Pintores pensam com linhas e cores, músicos pensam com sons, cineastas com imagens, cientistas com equações e escritores com palavras. Por isso não há nenhum privilégio ou hierarquia entre essas diferentes atividades, já que cada uma delas é igualmente criadora. O verdadeiro objeto da arte é criar seres de sensação, agregados sensíveis, o objeto da filosofia é a criação conceitual, e o objeto da ciência são as funções. Criar um conceito é tão difícil quanto a realização de uma composição visual, sonora ou verbal. Entre a arte e suas produções sensíveis, a filosofia e seus conceitos e a ciência e suas funções é possível encontrar ecos e ressonâncias da atividade criadora. Desse modo a arte, a ciência e a filosofia mantêm entre si relações de troca e de intimidade, mas a cada vez por razões intrínsecas. Criar é um ato que responde a mais absoluta necessidade, é precisamente essa necessidade que faz com que um pensador, um cientista ou um artista se proponha a criar ou a inventar.
Eis que retomamos a questão acerca do que nos leva a pensar, se orientar no pensamento. Creio que, assim como os filósofos, artistas e cientistas também sentem um incômodo que os faz pensar, criar, inventar, pois só se cria pela mais absoluta necessidade. Essas atividades criadoras traçam linhas melódicas estrangeiras entre si que não cessam de interferir umas nas outras e de incomodar a besteira.

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