sábado, 5 de março de 2016

"Sob dois marços", por Luiz B.L. Orlandi

           




           Amanheci um tanto assustada na manhã de ontem. Enquanto me preparava para o trabalho e, como de costume, assistia a um dos noticiários, Bom dia Rio da Rede Globo de Televisão, fui pega de surpresa ao me deparar, em pleno jornal local, com a transmissão, ao vivo, do Mandado de busca e apreensão da Polícia Federal, à casa do ex-Presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. Os jornalistas de plantão informavam aos telespectadores que nosso ex-Presidente havia sido convocado a depor, sob a condição de uma condução coercitiva, na vigésima quarta fase da Operação Lava-Jato, designada Aletheia, palavra grega que significa verdade. E, por diversas vezes, este noticiário interrompeu as notícias locais para dar voz a outro noticiário nacional Bom dia Brasil, também desta Emissora de TV, cujo âncora atualizava as informações advindas do helicóptero da emissora e anunciava a cobertura, completa e ao vivo, dessa fase da operação, após o noticiário local. 
            Qual não foi minha surpresa e perplexidade ao ver, já no noticiário local, a cobertura ao vivo e completa de uma operação que, do meu ponto de vista, deveria ser sigilosa, mas como bem ressaltou nosso ex-Presidente, em seu discurso, após o depoimento: "...nem meus advogados, nem eu, sabíamos dessa convocação, mas a imprensa estava à espera, para filmar todo o acontecimento ao vivo". Para Lula, ficou clara a operação, designada por ele de "pirotécnica", da Polícia Federal, articulada com a Imprensa e a Oposição que pareciam ser as únicas que sabiam desta convocação. 
           Ainda em seu discurso, Lula manifestou sua indignação, sobretudo, por ter sido convocado sob a condição de uma condução coercitiva, pois ele já prestou inúmeros depoimentos e, mesmo tendo respondido sempre às mesmas questões, ainda assim, ele teria comparecido a mais uma convocação. Não havia, portanto, necessidade de uma convocação desta natureza, muito menos, o incômodo causado à sua esposa que, segundo ele, desde os 11 anos de idade, já trabalhava como empregada doméstica e que deveria ter sido ao menos respeitada, e também seus filhos e a Clara.
            Os acontecimentos de ontem, ao contrário do que provavelmente pretendiam, reascenderam as chamas de um possível retorno de Lula ao cenário político e fortaleceram o Partido dos Trabalhadores. Porém, a ameaça de um novo Golpe neste país infelizmente parece ainda não estar descartada, uma vez que a Oposição articula novas manifestações e não cessa de falar em um suposto Impeachment da Presidenta Dilma, que nada fez para merecê-lo. Segundo Lula, ainda nos discursos de ontem, Dilma está sendo impedida de governar, uma vez que a Mídia e a Oposição, desde que perderam as últimas eleições presidenciais, mais precisamente como afirmou ele, desde o dia 26 de outubro de 2014, não pára de impedi-la de governar este País: primeiro tentaram anular as eleições e agora tentam o Impeachment. Tudo isso contribui para acirrar ainda mais a crise econômica, da qual a própria oposição também participa.
        Um novo Golpe de Estado, cinquenta e dois anos após o golpe de 1964, seria um grande retrocesso de todas as nossas conquistas sociais e democráticas, além de ser profundamente injusto, como todo golpe! A esse respeito, transcrevo abaixo um belíssimo texto do Professor Luiz Orlandi, do Departamento de Filosofia da UNICAMP, que felizmente ou infelizmente presenciou, como ele mesmo diz, o golpe de 1964 e que, como muitos de nós brasileiros, também vislumbra essa terrível possibilidade agora. Reitero meu agradecimento a ele por possibilitar a postagem de seu lindo e inspirador texto neste blog!

              
              SOB DOIS MARÇOS


            
                Era uma vez março de 1964. Agora é um março de 2016.


            Acontecimentos ditos históricos são dificilmente comparáveis, seja com o intuito de tratar empiricamente suas semelhanças e diferenças, seja o de submetê-las a um esquema racional abrangente. Sempre surgem detalhes perturbadores da percepção ou do raciocínio. Se isso acontece aos que se dedicam à história dita maior, à história envolvente, o que dizer então do ponto de vista de quem vive, olha, ouve... e apenas balbucia do ponto de vista de um lance qualquer de histórias contidas? Pode-se dizer, pelo menos, que há infindáveis séries de dificuldades para exprimir algo nesses dois níveis, o das histórias envolventes e o das histórias contidas.


            Do ponto de vista da história envolvente, é fácil encontrar o registro de que março de 1964 foi um dos períodos cronológicos decisivos no processo antidemocrático, que culmina com o golpe militar de 1º de abril daquele ano. E hoje? O que a história envolvente já pode registrar é que uma poderosa midia jornalística e televisiva, cúmplice e potencializadora do exercício exorbitante de um setor da magistratura e de forças policiais, milita, espetaculosamente, em prol de um processo antidemocrático de redução do prestígio de representantes políticos de forças socialmente inovadoras.


            Pois bem, o que aqui pretendo exprimir é apenas algo ligado a um pedaço de história contida, historinha que, neste preciso momento, pinguepongueia entre dois marços,  o de 1964 e o de hoje, março de 2016. Que algo seria esse? É possível que  não seja mais do que um sentimento. Ou talvez ele seja um pulsar que minha consciência toma como sentimento, mas que, nas cavernas que me constituem, ele opera como intensidades capazes de qualquer coisa.


          De qualquer coisa que promova a defesa de nossa débil democracia, débil, sim, mas sem a qual seremos vítimas do que há de pior hoje, março de 2016, no congresso, nas forças policiais, na magistratura, no campo jornalístico e televisivo, nos predadores do meio ambiente, nos maus patrões e senhoras fascistóides, nos promotores da imbecilidade, nos ressentidos contrários a conquistas populares, nos assaltantes de merendas escolares, nos que ofendem nossos artistas, nos que corroem a escola pública, universal e gratuita, nos machistas, nos racistas, nos homofóbicos, nos exploradores e entristecedores da vida alheia, nos que buscam criar alegria através do vilipêndio e maltrato de uma pessoa, de uma família como o que está acontecendo hoje, 4 de março de 2016, em Congonhas.


         Esse sentimento seria o mesmo que vivi em 1964? Há uma quebra na linha. O ardor que me levava a lutar pela democracia naquele passado era o de quem sentia como equivocados o inimigo militar golpista e as mulheres marchadeiras que o apoiavam nas ruas de Araraquara. Liderei uma greve estudantil contra o golpe. Alguns poucos colegas foram contrários à greve, mas não gritavam em apoio ao golpe. Eu sentia, com certa alegria, que não propiciaríamos ao golpe uma juventude com estampa autoritária. De um tempo para cá, apesar de constatar que dificilmente encontro um jovem autoritário na universidade pública na qual ensino aqui  em Campinas, fui perdendo aquele sentimento de quase certeza de que não teremos jovens dispostos a seguir a canalhice que vem se armando contra a democracia brasileira. Como idoso, sei o quanto precisamos de jovens democráticos. Preciso acreditar que eles não vão se imbecilizar, preciso acreditar que eles saberão cultivar boas relações e não promover o ódio entre brasileiros, entre brasileiros e outros povos. Preciso acreditar que eles não personifiquem o pior dos futuros. Não por mim, vejam bem, mas por eles mesmos e por meus netos e netinhas, pela imensidão de netos e netinhas, entes de um futuro que se decide agora, a cada dia, a cada manifestação libertária.


           Ainda sem bengala que me ampare, mas tomado por um libertário sentimento democrático anti golpista, irei às cinco horas da tarde a uma manifestação aqui em Campinas.  


            Abraços do Orlandi